Enquanto Isso, No Escritório da Dame Blanche...

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Ed. 7 —Lágrimas de carne, batidas no liquidificador

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Ed. 7 —Lágrimas de carne, batidas no liquidificador

Do que é feita uma história? No caso do novo livro da DB: memórias, pássaros e maratonas de Discovery Channel. Fernanda Castro fala sobre "Lágrimas de Carne", seu lançamento pela editora.

Editora Dame Blanche
Oct 22, 2020
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Ed. 7 —Lágrimas de carne, batidas no liquidificador

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O escritório da Dame Blanche está em ritmo de lançamento — Lágrimas de Carne, uma fantasia sombria escrita pela Fernanda Castro, entrou na pré-venda nesta semana. Como de praxe, a pergunta para a nova autora na nave-mãe é: “como surgiu sua história?” E eis o que ela nos respondeu…


Lágrimas de carne, batidas no liquidificador

Quando você quiser ver o cérebro de um autor ou autora dando tela azul bem na sua frente, basta pedir para que a pessoa resuma, em uma frase, quais foram as inspirações para determinada história. E ela provavelmente não vai conseguir fazer isso porque, no fim das contas, histórias são emaranhados de ideias, de estéticas e vivências acumuladas no subconsciente até que uma semente de enredo brote e comece a sugar todas essas coisas para crescer. 

É um personagem que pega o tique nervoso do seu tio, é o prédio bonito que você viu certa vez no Pinterest, é aquele medo arraigado que você nem sabia que tinha, mas que acabou sendo transportado para o papel. Boa parte desse processo acaba inclusive passando batido para quem escreve. Sabe aquela máxima de que “só você pode escrever a sua história”? Não gosto da ideia de que uma pessoa só deve escrever sobre o que ela conhece, mas concordo, sim, que o que ela conhece tem papel fundamental nas coisas que ela produz.

Comecei a escrever Lágrimas de Carne como um exercício durante a mentoria da SFWA (que sempre recomendo para todo mundo que escreve ficção fantástica e que consegue se virar mais ou menos no inglês). Minha mentora, Kerstin Hall, é sul-africana, e conversamos bastante sobre as divisas entre abraçar a região em que vivemos na nossa prosa e transformar nossa identidade cultural em produto de exportação pasteurizado para agradar outros mercados.

Recentemente, vi esse assunto surgir pelo Twitter, com as pessoas argumentando que histórias ambientadas fora do eixo Sul/Sudeste são classificadas como regionais, como exóticas, quando, na verdade, são apenas histórias escritas nos lugares onde os autores vivem. Remoendo sobre isso, na época, decidi que queria escrever uma trama cujos elementos fizessem sentido para mim. Se eu precisasse ilustrar uma alegoria, que cara ela iria ter?

Todo mundo possui alguns temas que ressoam fundo dentro de si. Questões de natureza pessoal ou que apenas atiçam seu interesse, mas que mexem com você. No lado pessoal, acho que meu maior nêmesis filosófico é a morte. Tenho muita dificuldade em processar e aceitar a finitude das coisas, a total falta de controle e o desconhecido. Também tenho um fraco por personagens com um senso de dever forte e quase destrutivo. Adoro ler sobre famílias complicadas, e se não for pra um personagem sofrer de amor por uns vinte capítulos, melhor nem me chamar pra festa.

Por outro lado, gosto de metáforas, gosto de representações físicas para conceitos difíceis de explicar. Talvez essa tenha sido a porta de entrada do gênero fantástico na minha vida. Muito se fala, por exemplo, de como a Ficção Científica tem o poder de debater o social e o político, a macro humanidade. Mas gosto, pessoalmente, das histórias que me retorcem por dentro, que representam o eu, que me fazem entender as coisas que eu estou sentindo e também as decisões dos outros, mesmo quando elas não fazem sentido dentro do que considero certo. Quando a gente se permite fazer isso dentro de uma história, ou junto de uma história, é raridade a resposta sair exata. Geralmente o que a gente recebe são perguntas melhores e uma dose extra de empatia, por nós e pelos outros.

Como alguém que passava as férias escolares no meio do mato e que amava a TV a cabo da casa dos parentes só porque tinha Discovery Channel, não é uma surpresa que os animais tenham se tornado tema corriqueiro nessas minhas tentativas de representar seres humanos.

Do Twitter da Fernanda Castro: “ Essa é a casa da minha avó em Lagoa dos Gatos, já sem ninguém morando (quantos likes meu pai de boné merece?). E o Dante Luiz (ilustrador da capa de Lágrimas de Carne) colocou EXATAMENTE a casinha na capa. <3”


Eu convivi com aves a minha vida inteira. Enquanto escrevo estas palavras, há um urubu rodeando a minha janela, enquanto duas andorinhas descansam numa antena parabólica e as calopsitas piam lá da sala. Moro em um andar alto, e minha mesa dá bem de frente para um janelão que permite ver o topo de muitas e muitas outras construções. Sempre que preciso parar, tirar a cara da tela e olhar para o além, buscando inspiração ou tentando combater mais uma crise existencial de “é 2020, vamos todos morrer, você é uma farsa”, é para os carcarás que eu olho.

Durante todas as viagens para o interior, quilômetro após quilômetro da velha conhecida BR-232, são os urubus e os falcões que eu acompanho nos galhos, são os anus pousados nas cercas vigiando o gado, são as corujas-buraqueiras de cada morro. O pio das suindaras no meio da noite sempre me traz um sorriso, porque eu, minha irmã e meu pai ficávamos na varanda observando as corujas passarem. Mês sim mês não uma acabava entrando lá em casa, ou deixando um rato de presente.

Mais do que a sensação de lar, de identidade e de pensamentos profundos (algumas das minhas melhores ideias, se é que posso chamar assim, nasceram em passeios de carro), as aves de rapina brasileiras, em especial as carniceiras, ancoram em mim essa sensação de finitude da vida, mas também de transformação. Sempre foram essa fronteira, essa separação entre vida e morte, entre as minhas realidades de metrópole na zona da mata e cidade pequena no agreste. Talvez sejam o meu próprio “verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver”. Prometeu era devorado por uma águia todos os dias. No zoroastrismo, os cadáveres são ofertados aos abutres. Não por coincidência, a primeira história que escrevi e mostrei ao mundo, ainda nos tempos de blog, era sobre um urubu que observava um funeral. Acho que a imagem nunca me abandonou.

Então Lágrimas de Carne veio, e eu sabia que queria escrever sobre uma carpideira e sobre a família esquisita de gente com asas que ela criava. Eu vinha pesquisando sobre as carpideiras, meio fascinada com esse papel religioso e quase esotérico de lidar com os mortos e com os que ficam. Eu sabia que queria falar sobre morte, sobre dever e, também, sobre amor. E eu sabia que precisava falar sobre tudo isso de um jeito cru e meio rasgado para funcionar, assim meio engasgado na garganta, tipo ter de aceitar que todo mundo vai partir um dia. Canja da galinha que você criou em casa, batida no liquidificador.

Alguns dias após o envio desta newsletter, Lágrimas de Carne estará pelo mundo, e, quem sabe, você seja uma das pessoas que vai ler o livro. Talvez você se identifique com muitas coisas, talvez você considere a ambientação exótica em comparação com a sua realidade, estrangeira para mim. E talvez depois você me diga que eu estava mentindo, e que tudo o que eu quis fazer foi colocar uns monstrengos perturbadoramente bonitos andando pelados lá pelas bandas da família da minha mãe. Bem, você não vai estar mentindo.


Lágrimas de Carne já está em pré-venda pela Amazon, e estará também disponível via, Kobo, Google Books e Apple Books a partir do dia 30/10.

E se você leu até aqui, um pedido da gerência: se você leu algo da DB e curtiu, não esquece de comentar por aí — seja no Twitter, no Instagram, no Skoob, no Goodreads.

Nos vemos em breve!

Com um abraço,

Anna Martino,
diretamente do escritório da Dame Blanche

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