Ed. 6 — Descrevendo tecnologias na Ficção Científica
Saber falar "technobabble" com fluência é um truque muito útil para autores — quem nos guia no assunto é a autora Lady Sybylla

A convidada de hoje na newsletter é Lady Sybylla, escritora, geógrafa e “fã do futuro e da Ficção Científica”. Ela mantém o blog Momentum Saga há quase dez anos e, pela DB, publicou duas aventuras espaciais: Deixe As Estrelas Falarem e Por Uma Vida Menos Ordinária. A pergunta de hoje: como você descreve tecnologias que não existem na vida real? Conta aí, capitã!
Descrevendo tecnologias na FC
Uma dúvida muito comum de quem escreve ou quer escrever ficção científica é: devo descrever com detalhes a ciência e a tecnologia do enredo? É uma história de ficção científica, afinal e muitos podem se sentir na obrigação de descrever seus motores, reatores e armas de raios. Temos muitos exemplos de explicações científicas e tecnológicas, como as conversas que os engenheiros de Star Trek tinham, o chamado technobabble (adoro, aliás). Star Trek e outras séries de ficção científica, como Stargate, se valem de explicações “científicas” para amparar seus enredos, ainda que a ciência seja impossível, mas que façam sentido na ciência fictícia da franquia.

Entretanto a descrição da tecnologia pode ser um problema caso você não saiba como ela funciona. Se você estiver se apoiando em uma tecnologia que já existe, pode acabar não descrevendo o suficiente e ainda acabar errando em algum momento. Se é uma tecnologia inventada, ela vai precisar, pelo menos, parecer plausível - como o technobabble, seus amortecedores de inércia e coisas do tipo - para que os leitores consigam, pelo menos, entender do que se trata. Tem leitores que curtem esse tipo de descrição e curtem enredos bem precisos cientificamente, como Perdido em Marte, que viaja pouco na maionese. Mas tem outros que preferem se concentrar nos personagens e no seu desenvolvimento. O que você precisa saber é para que lado seu enredo está indo. Isso é muito importante.
Ficção científica não é uma história sobre ciência. É uma obra de ficção que pode se dar ao luxo de inventar tudo, até mesmo os motores de dobra, o sabre de luz, o Stargate e motores FTL (faster than light, mais rápidos que a velocidade da luz). Como dizia Rod Serling, o criador de Além da Imaginação: “ficção científica é o improvável tornado possível”. Se motores de dobra são improváveis, a ficção científica vai torná-los possíveis. É assim que a mágica funciona.
Temos muitos exemplos na literatura, principalmente, onde não há qualquer explicação para os eventos que acontecem e ainda assim a história funciona. Em Kindred, por exemplo, não temos qualquer tecnologia envolvida na viagem no tempo de Dana. Ela é uma prisioneira das circunstâncias, sem controlar a viagem, obrigada a viajar ao passado para proteger um de seus ancestrais, um senhor de escravos. Se esse ancestral não sobreviver, a própria Dana não existirá. O conflito é esse, não é necessário saber como a viagem é feita.
Já em O Livro do Juízo Final, de Connie Willis, sabemos que existe uma máquina do tempo, pois a universidade envia pessoas para vários momentos históricos importantes, mas em nenhum momento a autora descreve a tal máquina. Sua viajante, Kivrin, é uma historiadora corajosa, disposta a fazer uma das viagens mais perigosas que existem para poder estudar a Idade Média. O conflito se desenvolve em como trazer Kivrin de volta e o que ela vê no passado. Não interessa como a máquina funciona.
Às vezes, para descrever sua tecnologia, será preciso saber alguma coisa sobre a ciência real. Por mais que seja irreal um motor de dobra com um combustível de dilítio (um cristal fictício), as séries de Star Trek consultaram físicos para poder bolar maneiras de burlar as leis da física e assim criar as longas explicações científicas que temos nos episódios das séries. Na dúvida, era só despolarizar o conversor magnético da câmera de dilítio e dava tudo certo! Eu acabei de descrever uma bobagem técnica qualquer, mas que DENTRO do enredo funciona muito bem.
Outra franquia que se valeu de um material fictício foi Stargate. O mineral do qual o aparato é feito se chama naquadah, um mineral de quartzo que não existe naturalmente na Terra. Ele é supercondutor e pode aguentar as intensas pressões e temperaturas da abertura de um buraco de minhoca, que liga um Stargate no outro. Depois que a equipe da Montanha Cheyenne descobre que pode fazer muitas coisas com o naquadah, até geradores super potentes são inventados com esse mineral alienígena. Aliás, Stargate é especialista em inventar minérios aliens. Existem muitos elementos fictícios pela ficção científica, como o unobitanium, em Avatar e o vibranium, de Pantera Negra. Essa é uma ótima maneira de você inserir um elemento exótico que possa explicar como a sua incrível tecnologia funciona.

Em ficção científica, esse componente misterioso dos enredos costuma ser chamado de Elemento X. O X é a letra que simboliza o desconhecido (Arquivo X, oi) e ele é responsável por conferir propriedades impressionantes a equipamentos e pessoas. Enquanto na fantasia a magia pode ser utilizada para explicar uma série de fenômenos do enredo, na ficção científica ela se transforma do elemento X. Nem estamos tão longe assim da afirmação de Arthur C. Clarke, que dizia que “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de magia”. Um smartphone seria visto como uma feitiçaria por qualquer pessoa da Antiguidade, por exemplo.
Esse Elemento X pode se tornar qualquer coisa que você quiser. Ele pode servir como um agente coringa que vai te privar de ter que explicar ao leitor como uma tecnologia funciona. Pense no capacitor de fluxo. Ninguém sabe como ele funciona em De volta para o futuro, mas é o elemento-chave para a viagem no tempo funcionar. Wakanda é a maravilha tecnológica que é por conta do vibranium e é isso aí, ninguém precisa do manual técnico do traje do Pantera Negra. Funciona e pronto!

Aí você pode perguntar: mas e o hard scifi? A ficção científica hard é conhecida pela precisão científica de seus enredos. Os autores não costumam inventar tecnologias ao criar seus enredos, utilizando foguetes, ônibus espaciais e aparatos que temos na atualidade. Suas explicações costumam ser longas e detalhadas sobre o funcionamento das coisas. Pessoalmente não é meu estilo favorito, o que me prende nos enredos são os personagens, suas interações com a ciência e tecnologia do enredo.
Se o seu enredo for de FC hard, vai precisar prestar muita atenção para não errar na ciência. E acredite, mesmo que sua ciência seja inventada, ainda vai ter gente para reclamar que ela não é precisa o suficiente. Muitos dos autores de FC hard são cientistas e usam suas áreas de conhecimento nos enredos. Se você não se sente confortável apostando em uma descrição científica ultra detalhada, talvez seja melhor não explicar nada.
E nem precisa, na verdade. Os enredos de Star Trek funcionam não por causa da tecnologia, mas por conta de seus personagens. Ainda que a tecnologia tenha papel fundamental na história dessa sociedade humana futurista que acabou com a doença, miséria, fome e desigualdades, são as interações entre os seres humanos que fazem a diferença. Sua ciência parece avançada e impossível porque grande parte dela é, mas há um pezinho na ciência. A propulsão de Alcubierre, por exemplo, é uma tecnologia de dobra para impulsionar naves estelares que parece muito com a tecnologia das naves de Star Trek. Teletransporte quântico já foi feito. Impressoras 3D lembram muito os replicadores das naves.

É preciso encontrar sua voz e assim deixar sua história autêntica. Pessoalmente eu não coloco grandes e longas explicações científicas, coloco apenas o suficiente para fazer a história andar. A nave da capitã Rosa, nas minhas novelas do universo do Consórcio Terra, funciona com drivers de salto interestelar para fazê-la percorrer distâncias de vários anos-luz e um propulsor comum que a move pelo espaço enquanto os drivers recarregam depois do salto. Não preciso explicar mais nada além disso, pois a tecnologia é apenas um acessório.
Na dúvida entre explicar ou não, minha dica é: não explique. A diferença entre a droga e o veneno é a dosagem e o mesmo pode se aplicar na explicação de tecnologias e ciências (fictícias ou não) em enredos de ficção científica. É possível utilizar na dose certa e ainda assim ter enredos divertidos e gostosos de ler. Mas se bateu a insegurança, não descreva sua arma de raios. Apenas coloque na mão de sua heroína e torne-a a salvadora da galáxia.
Se você precisa de uma ajudinha com technobabble, existem geradores próprios para isso, a maioria em inglês, infelizmente.
Gerador de technobabble do Scifi Ideas: https://www.scifiideas.com/technobabble-generator/
PDF com ideias de technobabble, apenas interligando termos numa tabela: https://www.dropbox.com/s/m25eyl01z52knbf/technobabbleModiphius.pdf?dl=0
O Seventh Sanctum é um dos sites mais antigos para criação randômica de ideias: https://www.seventhsanctum.com/
E, claro, o gerador de technobabble de Star Trek! https://www.technobabble.biz/
E aí, qual sua tecnologia inventada preferida? Contem para a gente lá no Twitter ou no Instagram da DB.
Nos vemos na próxima edição. Um abraço, e boas leituras!
Anna Martino
diretamente do escritório da Dame Blanche