Ed. 5 — Para que serve a magia na sua história?
Porque se "abracadabra" resolvesse todos os problemas, não ia ter manuscrito. Ou ia? Quem nos ajuda com a questão é Cláudia Fusco

A autora convidada de hoje é Cláudia Fusco — mestre em Estudos de Ficção Científica Científica pela Universidade de Liverpool, professora, script doctor e escritora. E a pergunta para leitores e autores assinantes: afinal, magia tem serventia para quê?
Para que serve a magia na sua história?
Vou ter que admitir que a ideia para esse texto surgiu de uma fonte das mais esquisitas: um vídeo em que uma garota explicava os riscos de um tal culto mágico-alienígena que surgiu no TikTok. Não vou me alongar nisso - a história toda parece uma ficção científica doidona, hipster e desleixada, sem falar no fato de que tem pontos muito problemáticos. Mas para fins didáticos, a essência desse culto é sobre acreditar que alguns de nós são, literalmente, descendentes de um tipo de viajante alienígena deixado na Terra. Seguindo algumas premissas do culto, em tese, seria possível fazer contato mentalmente com sua família de outro planeta e melhorar sua existência como um todo. Tipo um mix de magia, pensamento positivo e marcianos.
Sim, 2020 ainda não cansou de nos surpreender. Quanta energia.
Depois de passar um tempo impressionada com a imaginação humana, comecei a pensar em como, em pleno século XXI, somos propensos a acreditar na magia e quanto precisamos dela. Como temos sede e saudade de rituais, especialmente em tempos isolados. E o quanto estamos dispostos a chamar de “magia” algumas coisas que fazem parte das nossas vidas - da superstição, passando pelo folclore, e chegando, é claro, na fé e na religião.
Costumo dar aulas sobre o assunto. Magia é um dos meus temas favoritos desde sempre, e como pesquisadora de ficção científica e fantasia (e escritora - glup! Se acalma, Cláudia, se acalma), sempre arranjo motivos para ler sobre essas coisas. Um dos primeiros teóricos a se debruçar de verdade sobre o conceito da magia e suas implicações culturais foi Marcel Mauss, um pesquisador francês que viu a transição entre os séculos XIX e XX. É considerado um dos pais da antropologia e sobrinho do Durkheim, velho conhecido dos estudantes de comunicação e sociologia. Em resumo, era um cara brabo.
Seu livro Esboço de Uma Teoria Geral da Magia é uma delicinha. Aquele tipo de delicinha que dá um nó na cabeça, mexe com todas as suas convicções e faz repensar inúmeros sistemas de magia de fantasia que você já leu na vida, mas ainda assim, uma delicinha. É uma fonte infinita de ideias para escritores, ainda que essa provavelmente não tenha sido a motivação do autor para conduzir esse estudo. Mas quero focar em um ponto muito central do Esboço aqui: o que é a magia, afinal?

Fragmento de uma faca mágica, feita de marfim. Egito, 1981–1640 A.C. Da coleção do Metropolitan Museum, Nova Iorque.
Para Mauss, uma definição possível de magia é que ela uma “arte funcional” que proporciona “resultados tangíveis”. Sob vários aspectos, magia é arte (aliás, Alan Moore, o quadrinista bruxo, tem opiniões bem fortes sobre o assunto). A magia deixa rastros, símbolos, imagens, grimórios, línguas secretas, estátuas, máscaras. Mas quando se faz magia, quando esses instrumentos são criados para um fim. Há uma intenção ali - que podem se desdobrar em “resultados tangíveis”. Um boneco vodu que não funciona é apenas uma bonequinha de pano. Um feitiço é também uma forma de se expressar.
Então, te pergunto: para que serve a magia na sua história? Qual a função e a intenção dela? Como foi criada, desenvolvida e testada? Quem decidiu que felix felicis é melhor que magus otimistus e por qual motivo? Quais as consequências de um feitiço que não funciona? Tem gente que pratica essa magia melhor do que outras pessoas (e não apenas por conta da Força do Amor e do Plot)?

Pergunto isso porque o próprio Mauss levanta uma bola ainda mais importante nesse Esboço: a quem a magia serve. A magia ancestral, estudada a partir de olhares de diversos povos diferentes, era executada como forma de sobrevivência. Os primeiros registros que temos sobre magia indicam que os rituais mais essenciais da história da humanidade eram referentes à magia apotropaica, ou seja, de proteção, para afastar o mal olhado e intenções malignas. Também são primordiais os rituais de fertilidade, abundância e saúde, e também a magia simpática ou de substituição: uma imagem que representa o todo, por exemplo.
À primeira vista, talvez isso não chame tanta atenção. Ué, é assim mesmo, né? Ah, esses antigos obcecados por fertilidade. Mas vamos pensar um pouquinho mais sobre isso. Se a magia da fertilidade é necessária, é para se proteger da morte constante de crianças durante a gravidez ou na primeira infância. Se criamos rituais para se defender do mal, é porque o mal, ou pelo menos aquilo que enxergávamos como o mal, era o que conhecíamos, a norma.
Mauss é preciso quando diz que a magia é um produto da marginalidade e, por séculos a fio, ser associado à magia era uma sentença de morte.
Com o passar do tempo, na história da humanidade, a magia migra de mãos inúmeras vezes, é perseguida, ganha enorme importância política, é confrontada e comparada à tecnologia, colocada para escanteio, perdoada. No século XX, a magia está tão domesticada no nosso imaginário que se torna arte e produto de estudo. O gênero fantástico floresce como uma resposta a um mundo pós-Revolução Industrial que se despede cada vez mais do imaginário bucólico; é também um tipo de arte que enaltece a magia, os antigos bruxos e bruxas, os mistérios do passado.
É sempre um pouco irônico, quando a gente para pra pensar. Foram necessários séculos de ódio, morte e ignorância para colocarmos a magia onde ela sempre esteve: no panteão das criações humanas de maior poder e influência no nosso imaginário.
E aí chegamos nessa newsletter. O que sua história sobre magia tem a ver com tudo isso?
Tem a ver com aquilo que perpetuamos ao escrever fantasia. Quais histórias estamos contando? Para que - e para quem - a magia serve na sua história?
Não quero aqui causar uma comoção sobre histórias mágicas e felizes, que enaltecem e empoderam personagens sem lá muita reflexão sobre as origens da magia. Gente do céu, como precisamos de histórias mágicas e felizes. Mas como tudo que a arte toca, magia é política - e cada escolha que fazemos quando brincamos com ela é, também, uma narrativa sobre o lugar de onde viemos e as vozes que queremos priorizar.
Sua magia é doméstica ou comunitária? Perseguida ou que tolhe? É religiosa? É individual ou coletiva? E quais as implicações de cada uma dessas escolhas? Quanto custa praticar magia e, em especial, por que custa?
Alguns livros tratam muito bem dessa herança difícil e violenta que a magia tem no nosso mundo. No momento, estou lendo Eu, Tituba, Bruxa Negra de Salem, da Maryse Condé, que retrata de forma impecável os perigos de ser uma mulher negra e mágica em plena Idade Moderna. O Poder, de Naomi Alderman, faz a mesma provocação. Também podemos adicionar A Balada do Black Tom, do Victor Lavalle, e mesmo o nacional O Auto da Maga Josefa, da Paola Siviero, nesse conjunto de obras incríveis que lidam com a magia na marginalidade. E muitas, muitas outras obras, que só estão esperando para serem lidas - e escritas!
Vou encerrando essa conversa aqui com um lembrete. Os eventos do mundo não acontecem de forma isolada. A caça às bruxas mais cruel e sanguinolenta que o mundo já viu, que durou cerca de trezentos anos em uma sociedade dita “moderna” e “racionalizada”, aconteceu ao mesmo tempo que Shakespeare, Hobbes (um defensor da caça às bruxas como controle populacional, inclusive) e Isaac Newton. Todos deles, de uma forma ou outra, estão relacionados à magia e às pessoas que acreditavam nela. E se o nosso mundo sempre foi permeado por magia e as consequências dessa crença, por que isso seria diferente na sua história?
Por enquanto, é isso. Mais notícias na próxima edição. Cuidem-se, lembrem de usar a máscara no lugar certo, lavem as mãos e leiam muito.
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Um abraço, e boas leituras!
Anna Martino
diretamente do escritório da Dame Blanche