Ed. 3 — Os movimentos de uma cidade inquieta
Como surge uma ideia? E como ela se desenvolve? Quem responde é Waldson Souza, autor de "Oceanïc"
Uma das muitas propostas desta newsletter é trazer um pouco do universo dos autores para o público. Afinal, ideias não dão em árvores — e uma ideia que se transforma em um manuscrito completo, menos ainda. Como chegamos no produto que está no seu celular/e-reader/computador? Por onde se começa? E, uma vez começado, como decidimos o que os personagens podem ou não ser?
Hoje, quem conta essa história é o Waldson Souza, autor da ficção científica Oceanïc. Perguntei se ele poderia explicar de onde surgiu a ideia para a história de Rafa e Jonas — e como as criaturas marinhas apareceram. O relato, você acompanha logo abaixo:
Os movimentos de uma cidade inquieta
Sei que pode parecer clichê se eu falar que “tudo foi ganhando vida” quando escrevi Oceanïc (como também pode ser clichê dizer que algo é clichê só para tentar eliminar o efeito). Mas quando olho para trás e lembro do processo de escrita, penso nos movimentos que a história fez até se tornar a versão final. Por isso decidi escrever este texto falando sobre como surgiu a ideia de um mundo onde as cidades são construídas nas costas de criaturas gigantes e sobre como cheguei a algumas conclusões sobre representação.
Em 2014, se não me falha a memória, vi a chamada para uma coletânea com a temática de monstros gigantes. Essa era a premissa básica, independente de como fosse o conto, os monstros precisariam estar lá. Na época, eu tentava me inscrever no máximo de coletâneas possíveis, mas essa foi uma das que não consegui terminar o trabalho e me inscrever. De qualquer forma, a ideia que tive para a história continuou comigo: uma cidade pequena, com casas amontoadas e terremotos recorrentes porque ela estava construídas nas costas de uma enorme criatura se movendo. Era um cenário de fantasia, com pessoas vivendo em extrema pobreza, mas que, por algum motivo, não consegui fazer funcionar naquele momento.
Corta para 2016, outra ideia, outro conto, outro “e se?”. E se uma garota trabalhasse em um quiosque vendendo sorvete na beira de uma estrada cada vez menos movimentada por causa da popularização de carros voadores? Paula, seu tédio e sua paixão por filmes surgiram em um conto chamado “O quiosque na beira da estrada” que postei em um blog que mantinha na época. Um texto curto e com uma ideia bem simples: um mundo futurista, uma jovem trabalhadora refletindo sobre sua vida, uma tentativa de assalto ao quiosque no final. Hoje, Paula pode ser vista trabalhando com Rafa no Silver Burguer nos primeiros capítulos de Oceanïc, então sua história está ali de alguma forma.
Quando escrevi o conto, tudo estava muito bem firme na superfície terrestre, mas não demorou muito para essas duas ideias mencionadas se encontrarem. Quanto mais pensava na cidade de Paula, mais achava interessante imaginar tudo construído em algo vivo andando na praia e mergulhando no mar. E logo não era só um lugar, mas um mundo cheio de criaturas-cidades: Oceanïc, Polën, Artreäl, Ufröm, Sectör. Cada uma com características geográficas diferentes e rotas individuais, pisoteando velhas cidades, mergulhando no oceano, nas alturas das nuvens.
Uma das primeiras ideias para Oceanïc era apresentar uma personagem protagonista que, linguisticamente, não teria marcação de gênero — inspirado em algo que vi no conto “Mi Buenos Aires Querido”, de Cíntia Moscovich. Eu já havia tentado fazer isso em outros rascunhos e é um exercício interessante porque a estrutura da língua portuguesa nos leva a marcar gênero, principalmente quando falamos na terceira pessoa. Então, ao começar a trabalhar em Oceanïc, precisei buscar algumas soluções. Narrar em terceira pessoa não funcionaria, então fui para a primeira. Eu também precisava de um nome para quem protagonizava a história, mas todos que pensei não eram neutros. A resposta para isso foi chamar a personagem sempre de Rafa, apelido comum para Rafael ou Rafaela.
Escrever dessa forma me deixou despreocupado com algumas convenções e construções de gênero. Rafa inicia a história pensando sobre a repetição de sua vida e do trabalho quando o ex Jonas aparece do nada e tudo começa a se encaminhar para algo mais grandioso que o próprio casal. O problema é que conforme o mundo de Oceanïc crescia, foi ficando difícil manter essa neutralidade linguística. Ao mesmo tempo comecei a pensar que, por causa do pensamento heterossexista predominante na nossa sociedade, os leitores poderiam acabar imaginando Rafa como uma mulher só por causa da chegada de um ex-namorado. O que de fato aconteceu com algumas pessoas que vieram comentar comigo sobre a leitura. Na reescrita, algumas marcações de gênero foram colocadas, mas ainda numa quantidade menor com a qual estamos acostumados.
Talvez este texto seja menos sobre como a história de Oceanïc ganhou vida e mais sobre como, durante o processo de escrita, concluí sobre a importância de deixar explícitas questões importantes para a construção de personagens diversas. De um modo geral, as pessoas tendem a ler e imaginar um perfil homogêneo de personagens. Estamos acostumados a ver homens brancos, heterossexuais, cisgênero e sem deficiência protagonizando a maiorias dos livros. Então, caso não seja dito, provavelmente também não imaginamos personagens com características diferentes desse perfil.
Ainda há quem diz que qualidade é o fator mais importante quando pensamos em uma obra de arte, que o lugar ocupado pelo artista no mundo não importa. Essa não é a questão. Quando pedimos mais representatividade estamos questionando a falta de pluralidade de vozes, chamando atenção para o fato de que as narrativas que consumimos, sejam elas bem construídas ou não, são majoritariamente contadas pelo mesmo grupo.
Algumas ideias sobre o conceito de representatividade acabam sendo esvaziadas, principalmente quando ocorre apropriação mercadológica. Entretanto, a literatura, como outras formas de artes, tem o poder de criar e reforçar discursos — muitos deles problemáticos. E dentro de uma perspectiva afrofuturista, um dos primeiros passos para começar a mudar o mundo real é imaginando outras possibilidades. Por isso precisamos de imagens diversas e histórias contadas a partir de perspectivas variadas.
P.S.: Enquanto escrevia Oceanïc, fiz uma playlist que acabou virando uma espécie de trilha sonora do livro. Deixo aqui o link para quem quiser ouvir (seja para pensar em como as músicas se relacionam com as personagens ou só para julgar meu gosto musical mesmo).
Nos vemos novamente na quinzena que vem. Se você leu algo da DB e curtiu, não esquece de comentar por aí — seja no Twitter, no Instagram, no Skoob, no Goodreads, ou para o pessoal do seu grupo favorito de Whatsapp ou Telegram.
Um abraço, e boas leituras!
Anna Martino
diretamente do escritório da Dame Blanche